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quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Persona, Perda de Identidade e as Sociedades de Consumo

Como pode ser facilmente observado, cada sociedade é regida por normas, convenções, códigos éticos, legais ou morais, que tornam possível a convivência entre seus membros.
Em cada grupo ao qual pertencemos, seja a família, o trabalho, a escola, a igreja ou qualquer outro, somos chamados a assumir determinados papéis que são moldados segundo as regras que constituem cada um destes.
A esse fato psicológico que marca a interação e a influência do social na formação da personalidade, a Psicologia Analítica dará o nome de Persona.
A Persona é, portanto, uma máscara, uma possibilidade de nos relacionarmos socialmente, um compromisso com o restante do grupo, pelo qual, ao assumir-mos, nos reconhecemos como membros de um grupo, nos submetemos à valores que passam a perpassar nossas relações, tornando-as possíveis.
Contudo, como cada um de nós representa em si uma individualidade impossível de ser completamente reduzida ao coletivo, não é difícil perceber que o indivíduo consciente de si mesmo e que, portanto, advoga para si o domínio e a autoria de suas idéias, valores, sentimentos, em suma, de sua forma de ser, sentirá, mais cedo ou mais tarde, essa exigência social como algo arbitrário.
Daí que ao fazermos parte de um grupo e envergarmos essa máscara, damos origem também a uma tensão que surgirá do embate desses dois pólos opostos que devem conviver em nós daí por diante: o individual e o coletivo.
Nossa maior ou menor capacidade de interagirmos socialmente dependerá de quão bem desempenhamos nossa Persona, nossos papéis sociais.
A Persona trará gravada em si a marca dessa anuência do Eu, do Indivíduo que torna-se Sujeito, subjugado pelo Outro enquanto social, que ao mesmo tempo que o acolhe, o molda e o forma.
O social é, portanto, uma das faces daquilo que podemos chamar de Outro e que no contato com a personalidade individual podará suas arestas para que ela possa, mais tarde, frutificar em todas as suas potencialidades.
Normalmente, a Persona deveria reduzir-se a justamente isso, um compromisso com o social; contudo, algumas vezes, ela se torna tão forte que oprime e toma o lugar que deveria estar reservado ao Eu individual, reduzindo-o a coadjuvante. Podemos ver isso de maneira muito clara na forma como muitas vezes o papel social extrapola seu devido lugar e passa a ser exercido como um traço da própria personalidade individual.
Fato muito comum que acontece quando se utiliza, por exemplo, de vantagens ou poderes de um cargo, que deveriam restringir-se ao seu próprio exercício, como forma de obter vantagens pessoais.
Principalmente ao envolver a questão do poder, que confere maior status social a quem o possui, algumas pessoas tendem a como que incorporar características e direitos de uma função social a qual venham a exercer como algo que lhes seja próprio, como se essa máscara tivesse se grudado ao rosto, tornando-se não mais o que é, mas a própria face.
Esse traço da realidade social pode ver-se consolidado numa frase que passou a fazer parte do nosso imaginário: “ Você sabe com quem está falando ? ”Situações como esta, mostram um processo de identificação com a Persona através do qual incorporamos, em detrimento do Eu, características pertencentes a um papel social.
No conto “O espelho” , de Machado de Assis, temos um belo exemplo de como a identificação com a persona pode conduzir a uma perda da própria individualidade.Nele, um jovem e pobre rapaz, para júbilo da família e de alguns amigos, mas não de todos, já que o sucesso de uns nunca agrada a todos, é conduzido ao posto de Alferes.
Seguem-se à sua nomeação agrados e bajulações sem fim, de sorte que antes alguém comum, o jovem alcança tal notoriedade que deixa-se seduzir pelas vantagens de sua nova posição social.

Tanto foi o efeito da lisonja sobre sua alma que por fim sua identidade pessoal deu lugar unicamente ao alferes.
Onde antes havia um homem que, entre outras coisas, exercia uma patente, agora existia unicamente o exercício desta. A outra parte de sua própria natureza “ dispersou-se no ar e no passado ” .
No início, ainda receoso, desejava ser tratado sem cerimônias; contudo, os mimos e adulações dos quais era objeto terminaram por tocar-lhe a alma, fazendo com que o jovem deixasse de lado suas hesitações e usufruísse plenamente de sua nova e vantajosa condição.
De tal forma foi sua mudança que um velho espelho de sua tia não mais refletia sua figura. Tornara-se “sombra de sombra” .
Somente vestido com seu uniforme conseguia-se ver-se plenamente. Sua individualidade fora aniquilada por sua patente e tal verdade saltava-lhe aos olhos cada vez que mirava-se no espelho, e este, com sua límpida e sincera honestidade, de quem não possui nenhum traquejo para as suavizações que marcam os contatos sociais, recusava-se a mostra-lhe sua própria fisionomia quando despida de seus trajes oficiais.
Como se tragicamente dissesse: “ Sem eles, tu não és nada !”Vê-se como, por esse processo de identificação, a Persona deixa seu lugar característico de propiciadora de um bom relacionamento social, tornando-se a própria razão de uma existência social, enquanto o Eu torna-se sombra.
Seus trajes de Alferes tornaram-se mais do que o emblema de uma função social, não mais um mediador, mas sua possibilidade de existência dentro desse social. Ressalto aqui esse ponto por que deve-se entender que a exacerbação da Persona nem sempre é sentida como algo patológico pelo indivíduo.
Tornado mais importante, mais reconhecido, o sujeito ganha mais visibilidade social, novas formas de contato e de relações com o restante do grupo onde antes poderiam ser inexistentes.

No caso do alferes, sua patente atribuiu-lhe uma importância e influência onde antes lhe seria impossível.
A importância dessa mediação social, desses papéis que desempenhamos socialmente e que permitem nossa convivência e integração a um todo social, que Jung denominará de Persona, fica clara à medida que percebemos a cultura e os valores sociais como estruturadores da personalidade do indivíduo.
A cultura de uma sociedade, que se expressa em seus valores éticos, morais, nos seus códigos, leis, etc., molda desde cedo a personalidade de cada um de nós. Como viemos ao mundo em meio a um grupo social que nos antecedeu, somos criados segundo o molde desse grupo, passando a viver desde cedo segundo suas leis e costumes.
Mesmo que no futuro venhamos a assumir outros valores mediante o contato com grupos diferentes, nunca deixamos de levar conosco a marca de nossa cultura inicial, seja para segui-la, transforma-la ou renegá-la.Assim, é que construímos a nós mesmos mediante algo que nos antecede, que nos referencia como sujeitos.
É a partir do Outro e não de nós mesmos que nos tornamos sujeitos. Seja o Outro na forma da família, da escola, do grupo de amigos, ou de qualquer outro grupo social, é ao nos confrontarmos com ele, ao vivermos experiências junto a outros indivíduos, que construímos nossa própria personalidade.
Desta forma poderíamos nos perguntar voltando um pouco ao conto aludido acima. Se nos olhássemos hoje no espelho, se nossa cultura, nossa sociedade se olhasse hoje no espelho, o que veria?
Nossa sociedade capitalista e de consumo nos leva em busca de um ideal ao qual não conseguimos nunca corresponder, mas que perseguimos a todo custo, buscando adequar-nos à ele. Nossa melhor existência social depende de quanto mais parecermos adequados a esse modelo criado pelo mercado. Buscamos corresponder a um ideal de poder, beleza, de corpos perfeitos, de liberdade, de ausência de limites.
Queremos sempre mais, mesmo que esse mais não tenha nenhum sentido e quando conseguido seja descartado em nome de algo que agora se encontra mais a frente.
Impulsionados por um desejo de consumo que afeta até mesmo nossa linguagem – vejam a expressão “ Sonho de Consumo ” usada para designar algo que se deseja muito – somos conduzidos a uma forma de relação com o mundo marcada pelo imediatismo, pelo anseio pelo novo e pela despersonalização do Eu.Aqui, reencontramos nossa questão principal: a Persona.

Nessa busca constante por corresponder a esse ideal social alimentado continuamente pela mídia publicitária somos conduzidos a uma despersonalização, passando a nos importar-mos mais como parecemos ser do que com o que realmente somos.
O mercado passa a nos dizer como devemos ser, que atitudes devemos tomar, que idéias e valores devemos ostentar. No jogo de tensão entre individual e coletivo, o ideal passa a ser dado pelo coletivo, desvalorizando os traços individuais.
Passamos, assim, a cultuar a superficialidade das aparências, daquilo que parece ser em detrimento do que é.Contudo, o culto à aparência leva a um outro culto, o da imagem, que irá transmitir aos nossos olhos as facetas de um mundo de sonho e fantasia.

Aqui, nos encontramos embalados pelo avanço da tecnologia que nos legou os grande meios publicitários como a televisão e o cinema, capazes de atingir um grande número de pessoas, e de transmitir a todos o poder das imagens, de tudo aquilo que se dá ao nosso olhar.
Somos uma sociedade que prima pelo olhar, seja este olhar o olhar desejante que se dirige aos objetos, doravante potencializados em si por toda uma série de fantasias que se agregam à sua posse, transformando-os em representações concretas de valores e atitudes, seja o olhar que se dirige a nós mesmos numa cobrança incessante pela correspondência àquilo que tornou-se desejável pelo social.
De todas as formas nosso olhar é marcado pelo excesso. Vivemos uma exacerbação do visual.

Façamos aqui uma breve digressão para lançarmos um breve olhar sobre uma questão que durante muito tempo fez parte do imaginário ocidental: os Sete Pecados Capitais. Ira, Gula, Inveja, Preguiça, Avareza, Luxúria e Vaidade. Todos marcados pelo signo do excesso. Cada qual ligado a um demônio e a um castigo em particular.
Contudo, um deles parece possuir uma característica singular frente aos demais: a Vaidade.
Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Soberba, Orgulho ou, simplesmente, Vaidade, o mais pernicioso, posto que público, dos grandes pecados.

Em si mesmo, os pecados capitais são total ou pelo menos parcialmente pessoais, ou seja, podem desenvolver-se no íntimo de cada um, muitas vezes sem manifestar-se externamente, até mesmo ignorados daqueles que cercam o pecador.
A Ira, mesmo que no calor do sangue clame pela ação não seria mais bem vivida no remoer dia após dia daquela raiva que nos consome internamente?
A Inveja, vivida secretamente, sem ser percebida, perto do objeto invejado.
A Luxúria, que toma tantas formas, mas que também pode bem ser saboreada nas fantasias antecipatórias de sua realização; do masturbador compulsivo ela é a força motriz das fantasias, bem como pode ser encontrada na solidão oculta de um voyeur.
O que dizer do prazer solitário do glutão que pede para que não haja mais ninguém para que sobre mais e mais comida para ele próprio.
O avarento e seu dinheiro, completos em sua solidão, cuja grande imagem não seria outro senão o velho e pão duro Tio Patinhas, nadando sozinho entre suas moedas, trancado em sua caixa forte. E quanto à Preguiça? Solitária em sua falta de ação, em sua passividade estéril, a decompor-se lentamente; a grande imagem da esterilidade.
Por fim, a Vaidade. Aqui não se admite a solidão, o meramente pessoal; ela existe e é vivida ao ser mostrada. É preciso que o outro veja, admire, até mesmo, quem sabe, que inveje.
Num dito de São João Crisóstomo: “ Dá muito trabalho guardar o que todos querem, mas não vale à pena guardar o que ninguém quer”. Hoje poderíamos até mesmo dizer: “ não vale à pena ter o que ninguém quer ver ”.
Da mesma forma, a Vaidade pode deixar seu próprio posto onde é soberana, para assumir um papel de coadjuvante entre seus asseclas. Ou será que não poderíamos dizer que o avarento se envaidece de suas posses, ou que o preguiçoso faz o mesmo ao ver muitos trabalharem enquanto ele descansa? A chave de tudo é o prazer.
Cada pecado, cada vício, mesmo tendo caminhando a seu lado a dor e a culpa, nos oferece sempre um prazer, um prazer íntimo, não comunicável totalmente, que nos faz sentir, mesmo que por breves momentos, até que sua tênue ilusão se desfaça, que somos únicos.
Não encontramos aqui também expresso um desejo amplamente cultuado: o desejo de ser único, especial ? Não é a posse de determinados objetos o grande diferenciador entre o valor social dos indivíduos? Aqui, mais do que nunca somos tocados pelas mãos da Vaidade. Doce Pecado.Eis, então, que a Vaidade é um pecado do olhar, que se dirige ao olhar, não meramente ao olhar do vaidoso, mas sim ao olhar do outro, daquele que contempla a beleza, a ostentação exibida por aquele que busca atrair-lhe o olhar.
Enquanto alguns pecados ferem nosso contato com o outro, nos isolam para que melhor possamos desfrutar de seus prazeres, a Vaidade exige o contato, o olhar de um outro que contempla. A Vaidade é, acima de tudo e dos demais pecados, um pecado social.
Talvez possamos retornar à pergunta feita anteriormente. Se nossa cultura, ou nós mesmos nos olhássemos no espelho hoje, o que ele nos mostraria?Será que nossa imagem refletida na limpidez do espelho se mostraria manchada, disforme? Será que desprovidos de todas as imagens e adereços ainda teríamos alguma individualidade a ser encarada no espelho?Nossos olhos tão ávidos pelo novo, percorrem todos os recantos.
Entregamo-nos a modismos que mudam a cada estação, como forma de corresponder melhor a um ideal social, ao olhar do Outro, num anseio incerto de ser notado, de nos destacarmos em meio à multidão.

Através da posse dos mais variados objetos, ganhamos uma visibilidade social, uma existência individual.
Estranhamente passamos a querer comprar aquilo que nos deveria ser mais natural: nossa própria existência individual.Paradoxalmente, quanto mais perseguimos esse ideal cambiável, mais nos despersonalizamos, nos entregamos a superficialidade, buscando preencher esse vazio que nos é legado pela cultura do consumo com a posse desses sedutores produtos que nos prometem uma completude que só fantasiosamente os acompanha.
A perda de nossa individualidade nos faz ansiar por essa realidade perdida que parece agora possível de ser encontrada em nossos “ sonhos de consumo ” para os quais nos dirigimos com renovada ansiedade, vivendo uma secreta frustração à cada posse, que irá tanto nos esvaziar quanto nos servir de combustível para o renascer da esperança de encontrar esse sentido de vida em algo que parece reluzir mais à frente.Em nome da vaidade das aparências, nos entregamos à superficialidade dos valores, abrindo mão da profundidade de nossa individualidade.
Renegado a um segundo plano, o Eu cede seu lugar à Persona, uma máscara, que por ser mais cambiável e flexível, melhor corresponde à nova ética social marcada pela inconstância, passando aos domínios da sombra.Nessa moderna forma de ser nos construímos como indivíduos desprovidos de uma real capacidade de consciência crítica. Se a inserção social se dá mediante a capacidade de consumo do indivíduo, poderíamos dizer que é ela que torna possível o ser tratado como cidadão. Podemos então imaginar toda a massa de excluídos sociais, que por razões econômicas se encontram afastados dessa possibilidade de existir socialmente.
O problema é que dessa forma criamos não somente a inexistência social, mas também a humana. Não somos capazes de enxergar o Outro primeiro por que sua existência estará ligada a sua capacidade de consumir, depois por que mesmo imerso nessa sociedade de consumo ele estará desprovido de substancialidade, será meramente uma sombra, coberta com um sem número de adereços que podem lhe ser dados, ou melhor vendidos, nos grandes centros de aquisição de existência, os Shoppings Centers.
Quem poderá negar que estilos de vida e formas de ser, mesmo aqueles pretensamente contrários a isso tudo, como a rebeldia, podem ser oferecidos como produtos, ou associados a estes, e divulgados com o uso da tecnologia, que os tornará amplamente desejáveis, senão necessários a cada um de nós?Contudo, desprovidos de nossa interioridade, como encarar a nós mesmos em nossa individualidade, e, acima de tudo, como realmente encarar o outro como indivíduo e não como uma imagem?

Aqui se insere também a própria possibilidade de construção de uma sociedade mais justa, já que tal anseio tão discutido atualmente não pode ser atingido sem que os indivíduos que compõem esse social possam enxergar a si mesmos e aos outros como iguais entre si.
Com discutir a idéia de direitos e deveres, que regula o funcionamento do social, se em nossa sociedade o poder financeiro é que determina até onde vai nosso direito e se realmente temos algum dever.
O conceito de individuação, presente na Psicologia Analítica, refere-se a um processo psíquico mediante o qual cada um de nós dar-se conta da própria interioridade, tornado a nós mesmos aquilo que realmente somos. No confronto com nossas projeções inconscientes, com nossa sombra, com o aspecto criativo do Inconsciente nos tornamos conscientes daquilo que realmente somos, o que nos torna também capazes de uma relação mais real com o outro, que agora não surgirá aos nossos olhos coberto de nossos próprios conteúdos projetados.
Capazes de encarar nossos desejos, sentimentos, intenções, passamos a poder encarar aqueles que nos cercam nesse todo social como indivíduos também portadores de desejos, sentimentos e intenções, em suma, portadores de uma existência, que deve ser respeitada em sua realidade.

A inconsciência desses fatos, de nossas disposições inconscientes é o que torna tão difícil o relacionamento entre as pessoas, e por que não dizer, entre as culturas.Esse confronto ético e moral é necessário para nossa construção como indivíduos e para a construção de uma sociedade também mais ética e justa.
Talvez conhecendo um pouco mais sobre nós mesmos possamos fugir a essa realidade despersonalizante e finalmente nos olharmos no espelho para contemplar algo mais que uma imagem distorcida.

2 comentários:

eder ribeiro disse...

SOU ESCRITOR AMADOR E ESTAVA FAZENDO PESQUISA PARA UM CONTO SOBRE A PERDA DE IDENTIDADE E SEU TEXTO FOI DE GDE AJUDA. BJOS.

Anônimo disse...

Sou estudante, acabei de ler seu texto: "Persona, Perda de Identidade e as Sociedades de Consumo" e gostaria de parabenizá-la! Está exelente. Claro e conciso!
Não obstante, na minha opinião, caberia muito bem analisar essa perda de identidade lenvando em conta também a reificação da sociedade.
No entanto, o texto está ÓTIMO, parabéns!

contato:gugagmonteiro@hotmail.com